Migalhas: Cabe tanto aos agentes estatais quanto aos interessados adotar as medidas adequadas na esfera criminal, com vistas a criar um ambiente negocial isento de ilicitudes.

Muito pouco explorada, a área de “Precatórios” vem há anos sendo exercida por alguns poucos advogados que conseguiram identificar as nuances de cada tribunal e órgão envolvido para, com muito empenho, informar os clientes sobre o tão aguardado depósito e levantamento de valores.

Trata-se, então, de modalidade de requisição de pagamento de quantia certa e determinada resultante de um processo judicial movido em face da Fazenda Pública, na qual esta última é condenada e precisa, dentro de seu orçamento anual, organizar uma fila interminável de credores. Nesse ponto, importante ressaltar que cada estado possui sua própria fila, meio de levantamento, peticionamento e outras mil especificidades, que nem sempre são bem informadas aos operadores do direito.

Fácil seria se fosse cumprido o prazo preconizado pela Carta Magna. Nesse caso, o pagamento do precatório seria realizado no prazo de 18 meses, contados a partir da requisição, realizando-se o pagamento até o final do exercício subsequente, conforme entabulado no art. 100, §5º, da CF.

Muito embora a Constituição Federal tenha estabelecido um prazo para o pagamento dos precatórios, na prática a história é bem diferente: frequentemente, o Estado se utiliza de inúmeras estratégias para protelar o pagamento dos precatórios, incluindo a elaboração de novas leis e emendas constitucionais.

Para se observar a situação crítica do assunto, o Estado de São Paulo tem em média um atraso de 10 anos para a realização do pagamento dos precatórios. Esse prazo prolongado causa desânimo nos credores da Fazenda Pública, que, em decorrência da morosidade, acabam cedendo seus créditos a empresas que, diante do pagamento imediato no ato da realização do negócio jurídico, oferecem 30% do valor do precatório ao credor, assumindo a espera do pagamento integral do montante, conforme previsto no art. 100, §13, da CF.

Esse mercado é dominado por empresas intermediadoras, especializadas na compra e venda de precatórios.

Todavia, nem tudo são flores. Como se trata de área pouco explorada e cheia de especificidades, como exposto acima, algumas pessoas, agindo de má fé, aproveitam da falta de conhecimento do público envolvido para obter lucros ilícitos em face do credor originário.

Existem pessoas que se aproveitam da previsão legal de cessão para captar credores e vender o crédito destes para mais de um cessionário, enriquecendo ilicitamente e trazendo prejuízos aos adquirentes dos créditos, os tais cessionários.

Dessa forma, ao invés da oportunidade de investimento em precatório, o cessionário encontrará uma série de dificuldades para comprovar a legitimidade sobre os créditos, necessitando de estratégias jurídicas mil para ajudar o Poder Judiciário a identificar quem é o dono daquele montante, correndo, ainda, o risco de, ao final de longa disputa judicial, não ser reconhecido como legítimo detentor do crédito”.

Considerando tão somente a questão patrimonial, o cessionário lesado pode buscar eventual reparação pela via ordinária. Porém, em alguns casos, as condutas eivadas de má-fé, com obtenção de vantagem ilícita, extrapolam a seara cível e podem adentrar a esfera criminal.

A persecução penal, pela gravidade e estigma social que a acompanha, deve ser sempre o último recurso do Estado 1. Com efeito, dentro de uma ideia de ultima ratio do Direito Penal, a insuficiência de outras áreas da ciência jurídica faz surgir a premência de sua atuação. No caso, a alta incidência da venda em multiplicidade dos créditos indica que os meios e instrumentos proporcionados por outras áreas, mormente a cível, não têm sido suficientes para proteção dos bens jurídicos.

Contudo, para que haja crime é necessária a existência de lei anterior tipificando a conduta 2. Na espécie, é justamente o que ocorre, pois, em caso de multiplicidade de cessão de créditos dos precatórios, é possível analisar a existência de crime de estelionato, tipificado no art. 171, do Código Penal. Este tipo de operação se adequa à conduta típica descrita na legislação, pois engloba as três elementares: (i) obtenção de vantagem ilícita para si ou para outrem; (ii) prejuízo alheio; e (iii) artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento 3.

A primeira elementar é a obtenção de vantagem ilícita para si ou para outrem. Ao ceder os mesmos créditos mais de uma vez, o agente receberá além daquilo que lhe é devido, em desconformidade com a legislação, ou seja, de forma ilícita.

A segunda elementar é o prejuízo alheio, sendo uma decorrência natural da vantagem indevida. Em se tratando de venda múltipla do mesmo crédito, o adquirente do crédito que já foi alienado figurará sempre como vítima, uma vez que desembolsará quantia e não receberá o crédito.

Ademais, em alguns casos, o titular originário do crédito também será sujeito passivo do crime. Esta hipótese ocorre quando o autor do delito é o “intermediário” que aliena múltiplas vezes o crédito, porém somente repassa o valor de uma transação ao cedente, ou, até mesmo, sequer repassa qualquer valor.

Neste ponto, surge uma questão grave relacionada com a característica típica dos cedentes originários de crédito. Não raramente estes são pessoas idosas, com pouco conhecimento legal, que acabam sendo envolvidas em esquema fraudulento perpetrado por terceiros. A situação dos cedentes agrava-se quando analisamos que, nos termos da legislação civil, eles podem ser responsabilizados. Assim, além de não receberem a vantagem, ainda correm o risco de figurarem no polo passivo de uma ação de reparação.

A terceira elementar estabelece o modus operandi da conduta, sendo o ponto diferencial entre o mero ilícito civil e o crime. O tipo penal exige que se mantenha ou induza alguém em erro mediante emprego de meio fraudulento.

Nesta senda, não basta a mera realização de um “mau negócio”, mas sim a vontade livre e consciente de praticar uma fraude. Sem prejuízo da análise casuística, usualmente é o que se verifica nas hipóteses de vendas múltiplas do mesmo crédito, mormente quando intermediadas por indivíduos que detém controle da matéria, como é o caso de profissionais e empresas especializados em compra e venda de créditos.

Com efeito, o cedente e/ou intermediário, ao induzir o cessionário a acreditar que é o único e legítimo adquirente do crédito, pratica o crime de estelionato. Em regra, o cessionário somente tomará conhecimento de que foi vítima de fraude quando se depara com outros adquirentes pleiteando o mesmo crédito no processo judicial.

Não se pode olvidar que o próprio Poder Judiciário acaba sendo atingido pela prática nefasta, pois, ao invés de simplesmente efetuar o pagamento do precatório, se vê obrigado a dirimir a dúvida quanto a quem é o legítimo detentor do crédito, sem prejuízo das ações de reparação.

Neste passo, estas práticas reprováveis, porém corriqueiras, devem ser combatidas de forma eficaz, cabendo a utilização do Direito Penal justamente com o escopo de preservar os bens jurídicos dos personagens envolvidos. Portanto, cabe tanto aos agentes estatais quanto aos interessados adotar as medidas adequadas na esfera criminal, com vistas a criar um ambiente negocial isento de ilicitudes.

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1 TJ/DF – RSE: RSE 174579520088070001 DF, Rel. Des. Sandra de Santis, julgado em 29/04/2010.

2 Art.5º, XL, da Constituição Federal

XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

3 STF, Ext 1310/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 06/08/2013.

 

Daniela Nerdido Gregório, Marcus Romão e Marcela Moretto.

https://www.migalhas.com.br/depeso/350732/cessao-multipla-de-creditos-de-precatorios-e-repercussao-criminal